A perda da auréola

— Eia! quê! tu aqui, meu caro? Tu, num lugar reles! tu, o bebedor de quintas-essências! tu, o saboreador da ambrósia! Na verdade, há nisto qualquer coisa que me surpreende.

— Meu caro, conheces o meu pavor dos cavalos e das viaturas. Há pouco, ao atravessar o boulevard a toda a pressa, e ao saltar na lama através desse caos movimentado onde a morte avança a galope de todos os lados ao mesmo tempo, a minha auréola, num movimento brusco, caiu-me da cabeça no lodo do macadame. Não tive coragem para a apanhar. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que partir os ossos. E depois, disse comigo mesmo, há males que vêm por bem. Agora posso passear incógnito, fazer más acções, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E eis-me aqui, semelhante a ti, como vês!

— Devias ao menos mandar anunciar essa auréola, ou fazê-la reclamar pelo comissário.

— Por coisa alguma! Acho-me bem aqui. Só tu me reconheceste. Para mais, a dignidade aborrece-me. E também penso com satisfação que algum poetastro a vai apanhar e cobrir-se com ela impudentemente. Fazer alguém feliz, que alegria! e sobretudo um feliz que me fará rir! Ora pensa em X ou em Z! como será divertido!

(BAUDELAIRE, 2016, p.147)