ILHA PURA

''Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construída de tal modo que cada um dos seus pontos fosse refletido por seu espelho, e a Valdrada na água contém não somente todas as acanaladuras e relevos das fachadas que se elevam sobre o lago mas também o interior das salas com os tetos e os pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários.''

(Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis)

''Um sistema que tentasse fazer uma representação de tudo o que acontece nele, entraria em um processo sem fim tentando sempre manter o passo. Acumularia mais e mais informação em si, e ao final não teria energia, morreria mentalmente.''

(Stefaan Decostere, Angels in hell)

Quando realmente começou a funcionar, o fractal... Foi sutil a transformação da paisagem. Um efeito airado de luz, como se surgisse espaço entre tudo, espaço de luz, ou a desintegração brilhante dos corpos.

Havia leveza e pânico frente à desmaterialização, mas também talvez fosse pesado. Já não sinto mais nada. Desta forma, depois da linha do horizonte aparente, primeiro horizonte da paisagem do mundo, o horizonte ao quadrado da tela viria parasitar a lembrança do segundo horizonte, este horizonte profundo da nossa memória dos lugares, e portanto de nossa orientação no mundo, confusão entre o próximo e o distante, entre o dentro e o fora, turbulência da percepção comum que viria afetar gravemente nossas mentalidades 1 .

Eu já não sei onde estou. O que realmente aconteceu? O ritmo do imediato é um tempo parado. Superexposto. Estou desencarnada. Em algum lugar nossos corpos agem, na primeira imagem, seguem o fluxo da vida fisiológica, Não sinto meu corpo, não é possível falar em sensações, mas eu sei que estou viva; ou sei que estou morta? Como viver verdadeiramente se o aqui não o é mais e se tudo é agora? Todo espaço está preenchido, tudo está preenchido por essa luz, abstração total do sol do meio dia. Nada pode estar aqui, como será que viemos parar além do horizonte das aparências sensíveis? Não estou sozinha, TUDO é esse sol. E esse ruído... de uma forma louca, quase retrógrada estamos hipnotizados por esse ruído constante, em algum lugar ainda existe espaço, lá na primeira imagem. Imagem natural, encarnação. No horizonte do mundo. Como pude vir para tal lugar?

Onde está nosso pensamento? será que agora mesmo estou sendo transportada dentro de um ônibus, é possível pela forma como eu sinto o movimento da luz, mas na verdade é impossível saber. Será que ele está lá quando eu vou ao banheiro, sinto cólicas intestinais, o cheiro das coisas. Todo o pensamento parece estar aqui comigo nesse lugar onde só há luz e eu mesma indistinguível do resto, mas isolada, presa nisso que sou. O que é isso? Já são tantos os momentos em que eu não existo...

Não estaríamos no direito de nos perguntar se o que insistimos em chamar de espaço não seria tão somente a LUZ 2 , uma luz subliminar, do tempo que se expõe instantaneamente. Esse ruído confunde tudo, eu existo por que ele existe, esse ruído comprova a porosidade do espaço. Não sinto dor, nem nada. Só ele cabe nessa saturação.

Tenho uma lembrança clara de como as coisas eram antes, mas agora elas me parecem tão impenetráveis, eu me lembro por exemplo de estar dentro de um ônibus, mas minha lembrança para, na janela, na barriga de uma mulher, num rosto, na tela. Ela para, por exemplo, eu lembro da minha casa, da minha mãe sentada no sofá. Eu me lembro de estar no colo do meu pai, numa luz de verão, quando eu tinha um ano em frente à uma casa em construção. Eu vejo minhas lembranças. Em que luz aparecem essas imagens?

Eu me lembro de quando começaram a falar do fractal. Era um papo proibido, depois começou a aparecer mais e mais na superfície das informações. Era imprevisível e irreversível. Já estava acontecendo há muito tempo, mas não sei exatamente quanto. Talvez tenha sido tudo muito rápido, reprodução, reprodução. Todo o espaço foi suprimido.

1 Virilio, Paul; O Espaço Crítico – Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. p. 108

2 Idem. p.49